segunda-feira, 30 de março de 2009

Sem fisiologismo e com volúpia.


Uma gota de chuva toca-me a cabeça
Numa rua onde passa uma mulher.
Desce a testa alcançando o rosto
E ela anda inebriante em mim.
Cinza, o dia caminha colorido a sua volta,
Levando-me a pensar nele que faz poetas viverem.
Anda em câmera lenta deixando visível seu aroma
Em névoa que ressoa dos poros direto ao peito,
Doído do saudosismo de sua presença na rua,
Segundos de fuga do caos do mundo.
A gota passa do rosto ao pescoço evaporando-se
E logo outras chegam a ensopar os cabelos
Arrepiando, unidas ao vento, a pele,
Que deseja essa mulher na rua.
Notórios são seus finos pêlos nas pernas
Levantando-se ao menor sinal do frio
Escapando por entre rasgos propositais
Do jeans que cobre o resto, e chove,
Entorpecido, permito-me andar sem pressa,
Ao ritmo dos seus passos.
Nas mãos Baudelaire, talvez Balzac,
Realçando de cérebro seus lábios
E olhos semi-abertos pintados
Com sombras de desprezo.
De repente surge uma curva.
Ela, sem titubeio, abandona a rua,
Deixando como remédio
Um sorriso que devasta a mente
Num mantra inconsciente.
Eis que reaparece a vida dura.

(Dimitri Padilha)

sábado, 28 de março de 2009

Fonte da vida.


À Ubaldina Carvalho Cruz, minha avó querida.

Caminho perdido em floresta medieval,
Adentro, mais sinto os sons do início,
Vendo com olhos familiares, etérea miragem,

Este homem na linha do tempo, mimetizado
Entre folhas secas caídas em solo enriquecido
O sangue corre branco nos longos troncos,
Capilares copas enverdecidas de luz que resvala
Retornando ao globo ocular iludido pelo córtex.
São outonais visões de infância perdida entre galhos,
Genealogia de restos mortais transmutados em árvores.
Mais adentro, penetro em mim mesmo
Apresentada pelo espelho dos rios
Essa imagem irreconhecível do rosto que tenho
São pedaços falecidos de gente que ainda vive
Nos braços, pernas e tantos carbonos inalterados,
Decaindo a cada nascimento.
Rachados vasos nodosos de minha avó
Sangrando em Carvalho apodrecido
Mata fechada fechando ciclo
Vejo-me nos decompositores bichos
Sendo refeito a cada milênio
Numa mistura sem ritmo.

(Dimitri Padilha)

segunda-feira, 2 de março de 2009

Poema de páscoa.

Ao amigo Dorival Filho.
Pousas em meu rosto uma mosca.
Faminta, lambes meu sangue
Sedenta, matas meu suor.
Es minha existência precipitada a pó.
Bactéria pré-natal
Incubada na fecundação
Esse câncer que desperta prematuro
Anunciador do futuro.
Hoje sou voz e pensamento
Contato e redenção.
Amanhã serei lama, vento,
Um cipreste crescendo
Nesse Eterno Retorno do carbono
Quem sou não sei mais.
Serei essa voz diária desde que me conheci
Que fala sem som?
Quando ela cala ficamos mudos de existência?
Para onde vai a consciência na ausência das sinapses,
Senão para o chão, completando o ciclo da matéria?

(Dimitri Padilha).